Data Mercantil

Irlanda de 1990 marcou a Copa da Itália por ir às quartas sem vencer

Ao ser questionado sobre qual seria seu objetivo se fosse o técnico da Irlanda, Jack Charlton respondeu de primeira, como se ainda fosse o zagueiro sem finesse da Inglaterra campeã mundial de 1966.
“Eu vou colocar essa seleção no mapa do futebol.”
Soou como bravata. Nem ele levou a sério o que disse. Estava em uma pescaria na região de Middlesbrough, no norte do país, em 1986, quando um parente o encontrou para dar a notícia: ele havia sido contratado.
Se a Copa de 1990 é considerada a dos jogos mais truncados e defensivos da história do torneio, em parte o mérito (ou culpa, a depender do ponto de vista) é de John “Jack” Charlton.
Nenhuma seleção antes ou depois da dirigida por ele empilhou tantos empates e chegou tão perto de ser campeã mundial sem ganhar uma única partida. Com quatro empates, a Irlanda foi às quartas de final do torneio, contra a Itália, a dona da casa. Perdeu por 1 a 0 em jogada na qual o goleiro Pat Bonner escorregou e deixou o gol aberto para Salvatore Schillaci marcar.
“Queria muito ver como os italianos enfrentariam Packie [Bonner] em uma disputa de pênaltis”, sonhou o zagueiro Paul McGrath.
Com um futebol que o jornalista irlandês Eamon Dunphy classificou como “da Idade da Pedra”, Charlton conseguiu o que prometeu, por bem ou por mal. Transformou a Irlanda e a colocou na história das Copas do Mundo. Talvez não pelos motivos corretos para os amantes do futebol, mas colocou.
É difícil que alguém tenha levado tanto o pragmatismo às últimas consequências.
“Eu tenho de admitir que bonito, não era. Mas era eficiente”, reconhece Nial Quinn, atacante daquela equipe.
A Irlanda de Jack Charlton levou a retranca e os bicões para o ataque a um novo patamar. A instrução para laterais e zagueiros, ao receber a bola, era mandá-la imediatamente ao ataque. De preferência, pelo alto. Era a tática que no Reino Unido era chamada de “rota um”, o oposto da estratégia de ter sempre a posse e controlar o jogo com toques.
Deu certo. Na Eurocopa de 1988 (em uma época em que apenas oito times se classificavam para o torneio), a Irlanda derrotou a Inglaterra, em um dos resultados mais memoráveis de sua história, e esteve a sete minutos de ir à semifinal eliminando a Holanda, que depois seria campeã.
Mas, comparado ao que mostraria no Mundial da Itália, o futebol da competição continental pareceria o do Barcelona de Guardiola. Em 1990, o pragmatismo chegou a tal ponto que o árbitro francês Michel Vautrot chamou o volante Kevin Moran e o holandês Ronald Koeman para pedir que, por favor, as duas equipes jogassem futebol e parassem de apenas trocar passes no campo de defesa.
A Irlanda estreou com empate com a Inglaterra em 1 a 1. Depois ficou no 0 a 0 com o Egito. A igualdade em 1 a 1 com a Holanda deixou as duas empatadas em todos os critérios na disputa pelo segundo lugar. A Fifa teve de fazer um sorteio. A equipe de Charlton levou a melhor e ficou com o segundo lugar. A Holanda, em terceiro.
O sorteio foi a coisa mais parecida com vitória que a Irlanda experimentou no Mundial. A sorte a colocou para enfrentar a Romênia nas oitavas de final. Após 120 minutos de 0 a 0, levou a vaga por 5 a 4 nos pênaltis.
Centenas de milhares de pessoas foram às ruas do país comemorar a classificação histórica. A seleção irlandesa, que jamais havia participado da Copa do Mundo, estava nas quartas de final. O tricampeão Brasil, derrotado pela Argentina nas oitavas, não.
“Vendo hoje em dia as partidas, era um futebol horrível. Mas, naquela época, ninguém prestava atenção nisso. A Irlanda estava nas quartas de final do Mundial, e isso era algo inacreditável. Jack Charlton era a figura mais popular do país”, escreveu o jornalista Declan Lynch em seu livro “Days of Heaven: Italia 90 and the Charlton Years” (“Dias de Paraíso: Itália 90 e os Anos de Charlton”, sem publicação no Brasil).
O desempenho na Itália foi também o renascimento de Jack Charlton. Apesar de ter sido campeão em 1966, ele era o irmão muito menos talentoso de Bobby Charlton, o maior jogador inglês de todos os tempos. Ficou conhecido como integrante de um time do Leeds United que foi multicampeão, mas abusava da violência em campo. Pouco antes de assumir a seleção, ele havia pedido demissão do comando do Newcastle, seu time do coração.
Quatro anos depois, em 1994, nos Estados Unidos, ele levaria a Irlanda mais uma vez para o mata-mata da Copa. A equipe foi eliminada nas oitavas de final pela Holanda, em outro jogo que ficou marcado por falha do goleiro Pat Bonner. Mas, no caminho, conseguiu aquele que é o resultado mais lembrado do futebol irlandês: a vitória por 1 a 0 sobre a Itália no antigo Giant Stadium, em Nova Jersey, abarrotado de irlandeses.
“Pode parecer loucura dizer isso, mas, com o passar do tempo, o jogo contra a Itália ficaria cada vez melhor para nós. Acredito que haveria uma chance real de vencermos”, diz Kevin Moran, sobre o duelo no estádio Olímpico de Roma, em 1990.
Depois da eliminação, todo o elenco e a comissão técnica foram ao Vaticano para uma audiência com o papa João Paulo 2º.
A memória que ficou para os torcedores neutros pode ter sido o futebol ruim e os empates. Para os irlandeses que foram às ruas comemorar, foi muito mais do que isso.
Lynch conta a história, em “Days of Heaven”, da mulher que, em trabalho de parto, tentava superar o trânsito e as ruas entupidas de gente em Dublin para chegar à maternidade. Com o marido ao volante, ela chorava de dor. Com o carro parado, um policial se aproximou para ver o que acontecia e a viu aos prantos.
“Ah, minha senhora. Eu te entendo. Assim que o jogo terminou, eu também derramei algumas lágrimas.”

Fonte: FolhaPress

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