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Annie Ernaux, vencedora do Nobel, afunda na sua desgraça em ‘A Vergonha

Poucos parágrafos após descrever o evento em torno do qual constrói “A Vergonha”, Annie Ernaux, que acaba de vencer o Nobel de Literatura, escreve que todo relato “normaliza o ato, inclusive o mais dramático deles”. É uma armadilha: as pouco mais de 70 páginas do livro não chegam perto de tornar o episódio trivial.
“Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”, escreve a autora na abertura da narrativa. A partir daí, ela se volta à sua vida familiar e escolar no interior da Normandia, a fim de arregimentar informações que lhe permitam reconhecer a si própria na menina de 12 anos que vê seu mundo “afundar na desgraça”.
Publicada na França em 1997 e trazida agora ao Brasil na ótima tradução de Marília Garcia, “A Vergonha”, em sua linguagem sem concessões ao artifício, não surpreenderá os leitores familiarizados com a obra autobiográfica de Ernaux. Transitando entre o ensaio e uma espécie de catalogação de dados, o livro surpreende, porém, pela intensidade do sentimento indizível que, paradoxalmente, a autora faz transparecer.
Desde “O Lugar”, de 1983, Ernaux remexe as estruturas do literário ao reelaborar as próprias recordações, escolhendo não a ficcionalização da memória -como muitos autores contemporâneos–, mas a radicalização da distância entre escritor e seu eu rememorado. Reconhecendo a discrepância, Ernaux trata a memória como documento, analisando materiais do passado -fotografias, jornais, cartas- e procurando fazer o que chama de uma etnografia de si mesma.
Em “A Vergonha”, isso significa descrever minuciosamente as regras explícitas ou não da escola religiosa particular em que estudava, bem como o ambiente doméstico que compartilhava com os pais, também marcado pela prática católica.
A eficácia do procedimento, no entanto, é contestado pela própria voz narrativa, que insistentemente afirma a dificuldade de fazer coincidir o eu que escreve, lembra e observa com aquele que viveu os eventos. “Certeza de que ‘sou eu’; impossibilidade de me reconhecer, ‘não sou eu'”, escreve ela a respeito de uma antiga fotografia sua.
Esse incômodo com o desencontro entre as duas -a menina de 12 anos e a autora de quase 60- é o principal recurso narrativo de “A Vergonha”. Se elas só confluem no “peso” e no “aniquilamento” ainda sentidos e intraduzíveis, a tarefa é buscar o que as diferencia e o que as une.
Assim, embora a parte central do livro, “etnográfica”, seja por vezes enfadonhamente objetiva, ela é condição necessária para o baque da seção final, em que vem ao primeiro plano a sensação da quebra insuperável provocada pelo ato do pai e suas consequências no imaginário da adolescente e da adulta.
A vergonha promove um descolamento, que faz com que a Annie de 12 anos pela primeira vez comece a se enxergar de fora e, de modo ainda mais dilacerante, a observar sua vida doméstica com um olhar desfamiliarizado.
“Eu me tornei uma pessoa que não merecia a escola particular, sua excelência e perfeição”, escreve Ernaux. As páginas que relatam os dias e meses após o episódio de violência são as mais doloridas e impressionantes, porque nelas a autora penetra o território do exame impiedoso dos pais.
Essa apreciação crítica do casal de donos de uma venda é permeada por um olhar atento à diferença entre as classes sociais, que vai além da questão econômica, informando gostos e hábitos.
Na passagem mais pungente da narrativa, Ernaux conta a excursão que a adolescente e seu pai fizeram à cidade de Lourdes, na qual os dois eram os mais pobres e com menor capital cultural. Mesmo descrevendo os eventos com seu estilo nada dramático, Ernaux faz partir nosso coração.
“O pior da vergonha é que achamos que somos os únicos a senti-la”, escreve a autora. Não é, e há algo de cruel em lançar a vergonha dela no mundo, por meio da publicação do livro, que atinge e dispara a vergonha pessoal de cada leitor, sem consolá-lo pelo compartilhamento da experiência. A vergonha é, afinal, um dos poucos sentimentos, quiçá o único, que só faz supurar a cada vez que é posto em palavras.

A VERGONHA
Preço R$54,90 (88 págs.)
Autor Annie Ernaux
Editora FósforoTradução Marília García

Fonte: FolhaPress

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