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Livro ‘O Colapso da Nova Ordem’ é premonição do desastre político atual

“O édito 20/2019 da Nova Ordem Dirigente determinou que postos de chefia e direção no serviço público federal são da competência exclusiva de oficiais generais, almirantes e brigadeiros; postos de subchefia são da competência de coronéis e oficiais de patente equivalente das demais armas; postos subalternos devem ser preenchidos por capitães e majores; apenas funções simples, tais como auxiliares de limpeza, podem ser preenchidos por civis.”
A desgraça atual do Brasil pode se apresentar como sorte –ou armadilha– para os escritores. O período de Jair Bolsonaro na Presidência estava ainda em seu início quando B. Kucinski, como o jornalista Bernardo Kucinski assina suas obras de ficção, lançou a novela “A Nova Ordem”.
Agora, quando o governo enfrenta dificuldades para continuar no poder com o aval dos eleitores, o autor publica uma continuação, “O Colapso da Nova Ordem”, de onde foi retirado o trecho neste texto. Ao inaugurar a série, Kucinski mostra um Estado que deixou de ser laico –ao contrário, os líderes religiosos mandam e desmandam– e cujas instituições seguem uma obediência patriótica ao governo autoritário, que implementa a chamada Econec, a Economia Neoliberal Coercitiva. Tudo vale como pretexto para restringir os direitos dos cidadãos, privatizar empresas estatais, fechar universidades, extinguir programas sociais.
Escrito em 2019, o livro é uma premonitória radiografia do desastre anunciado. Como nos romances de Philip K. Dick abordando a paranoia cotidiana ou nas teorias de conspiração que alimentam os grupos de WhatsApp, “O Colapso da Nova Ordem” se vale de uma ideia manjada, a de que um corpo estranho implantado dentro das pessoas será fundamental para a narrativa de destruição.
“Um finíssimo eletrodo de platina conduz os sinais do nanoprocessador até o envoltório do tronco encefálico.” O Chip de Customização de Humanos Conformados funciona na base de algoritmos que suprimem as paixões e bloqueiam as funções críticas e analíticas do cérebro. A linhagem das famílias proprietárias e a oficialidade no comando do país também recebem a sua dose, mas de reforço às atividades de comando e autoestima.
Quando a coletividade parece conformada, vem a peste. Ou a Grande Peste, concebida por um consórcio de empresas multinacionais com o objetivo de reduzir a população do planeta à metade. Entre todos os governos, apenas a Nova Ordem dos Estados Unidos do Brasil, por sua importância na produção de alimentos, foi alertada sobre o vírus letal.
No entanto, a incompetência do comandante das Forças Armadas, general Gonçalves Maynard de Santa Cruz Oliveira, é de tal ordem que ele, atuando sob o disfarce de combater a pandemia, não consegue cumprir a missão de promover e acelerar a morte do maior número de pessoas. Na paródia de Kucinski, não existe a figura do mito fabricado; quem toma as decisões, diretamente, é o partido militar.
Fantasiar acontecimentos históricos contemporâneos, ainda não digeridos com a distância do tempo, é como andar na corda bamba. Os riscos diminuem quando os fatos, de tão mórbidos, fascinantes e deslocados do senso comum, se apresentam prontos –a distopia e a sátira colhidas sem esforço no mato da realidade. O Brasil de hoje é assim.
O autor tropeça por ter uma visão exageradamente maniqueísta da nossa conjuntura. Quem aprova o autoritarismo está satisfeito e vota no homem não precisa de chip para justificar suas ações. Kucinski, no entanto, constrói um relato impactante sobre a ferida aberta, e de difícil cicatrização, imposta à sociedade brasileira.

O COLAPSO DA NOVA ORDEM
Preço: R$ 48,00
Autor: Bernardo Kucinski
Editora: Alameda Editorial
Avaliação: Bom

Fonte: FolhaPress

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