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Em ‘Todo o Tempo que Existe’, Adriana Lisboa ensaia viver com o luto

E que bobagem isso de literatura”, escreve Adriana Lisboa, ao lembrar das últimas palavras que sussurrou no ouvido do pai no leito de um hospital. Diante de uma perda iminente e inevitável, diz ela que é preciso voltar “às palavras simples, às palavras de dentro, às palavras cicatrizes”, quando é possível entender por que as declarações de amor mais clichês perduram: elas parecem ser tudo que temos quando nos sentimos incomunicáveis.
Entretanto, é à literatura que a escritora carioca retorna dois meses depois da morte do pai, ocorrida em 2021, e sete anos depois da passagem da mãe, em 2014, para escrever “Todo o Tempo que Existe” em meio à pandemia de Covid-19 -da qual seu pai foi uma das vítimas. Premiada romancista e poeta, Lisboa escolhe escrever um ensaio autobiográfico como quem precisa, como todo enlutado, ensaiar novas formas de viver não depois da perda, mas com a perda.
Nesse sentido, o livro evidencia como o luto é um processo que amplia nossa consciência a respeito da dimensão narrativa da vida, na medida em que queremos contar não simplesmente a história dos que se foram, “mas a nossa história com eles e depois deles. A história deles em nós”. No entanto, esse anseio é atravessado pela aceitação da autora de que não há linguagem possível para a dor de uma “perda-pedra”.
Não à toa, Lisboa, em meio às lembranças dos pais, que ficaram 50 anos juntos, mobiliza referências artísticas e teóricas que compõem uma espécie de coro que nos lembra que o luto é também uma experiência coletiva, embora com pouco espaço no “grande falatório do mundo”. O “tempo outro do jardim”, por sua vez, como as árvores e flores do Jardim Botânico, onde passeia, irrompem em seu texto afirmando a força da vida que se renova.
Talvez tenha sido a exuberância da natureza, que insiste em viver mesmo em meio à destruição, contrastando com a tristeza inconsolável da perda, que levou a autora a pensar que falar da morte é falar da vida e do amor. É assim que Lisboa, mais do que escrever sobre o adoecimento ou a morte dos pais, constrói um multifacetado inventário do que foi vivido, pois amar é “ser capaz de lembrar das coisas menos nobres, menos bonitas, menos sãs, e saber: amor ainda assim”.
Assim, conhecemos os pais da autora, seu Arnaldo e dona Gilda, não por meio de grandes feitos, mas de seus gestos ordinários e profundamente humanos de habitar o mundo e de cuidar dos filhos. O dedo verde de uma mãe apaixonada por jardinagem, as serestas repentinas organizadas por um pai: estes são exemplos dos tantos bens imateriais que aqueles que se foram nos deixam e que podemos inventariar com a literatura.
Esse pequeno inventário do amor não é feito, porém, sem a consciência de Lisboa de que precisa se refazer sozinha em um mundo que se torna cada vez mais desconhecido ao não ter mais os seus alicerces. Por isso, ao aceitar o caráter irreparável da perda e a “soberaníssima” morte, as cicatrizes podem se tornar o “lugar por onde a luz penetra em nós”, o mapa em que dor e amor se encontram como parte da travessia do luto.
Em sua estreia no gênero ensaio, Adriana Lisboa, de forma franca e corajosa, nos convida a redimensionar o olhar para a perda de quem se ama, fazendo desta uma forma de investigação da vida que há por trás dela, em que o tempo do luto é também o tempo do amor. Com nossas “cicatrizes luminosas”, aprendemos, então, a “deixar que a morte exista na vida”, criando nossas narrativas para os mortos, esses “vagalumes que recusam a extinção” e podem brilhar em nós em todo o tempo que existe.

TODO O TEMPO QUE EXISTE
Preço: R$ 49,90 (136 págs.)
Autor: Adriana Lisboa
Editora: Relicário
Avaliação: Ótimo

Fonte: FolhaPress/Fernanda Silva

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