Data Mercantil

Subtexto xenofóbico imprudente arruína a diversão de Dupla Jornada

Cuidado na direção não compensa implicações infelizes do roteiro

É fácil torcer por Dupla Jornada, especialmente se você já é fã das searas que ele representa. São vários níveis em que o sucesso do filme da Netflix seria bem-vindo: para o cinema de gênero como um todo, que anda carente de obras que o abracem sem vergonha de serem o que são; para os filmes de ação de médio orçamento, que há anos buscam um lugarzinho para chamar de seu diante de um ambiente cultural onde apenas blockbusters conseguem se pagar nos cinemas; e, claro, para o subgênero vampiresco, que clama cada vez mais por outra daquelas reinvenções que já são marca de sua trajetória cultural.

Ainda melhor é constatar, nos primeiros minutos do longa de J.J. Perry, que ele parece estar à altura desses múltiplos desafios. A sequência de abertura, que consiste no caçador de vampiros Bud (Jamie Foxx) lutando contra uma sanguessuga velhinha dentro da casa dela, sublinha as melhores qualidades de Dupla Jornada. Primeira entre elas é o senso de ação dinâmico de Perry, que usa suas décadas de experiência como dublê em Hollywood para coordenar de forma elegante os movimentos e cortes de sua porradaria, traduzindo bem a brutalidade de cada impacto para a tela.

Em segundo lugar, a cena também desfila o olhar novo e interessante que o diretor traz para os seus vampiros. Ao invés de sedutores de voz suave, galãs adolescentes ou monstrengos noturnos grotescos, eles são criaturas maleáveis, que se movem e lutam como se seus ossos fossem de papelão (Perry contratou contorcionistas para interpretá-los) e seus corpos não pesassem nada. Aos poucos descobrimos que, no universo do filme, os vampiros são divididos por espécies e se originaram de uma mutação humana, uma ramificação massacrada e oprimida que agora busca o seu lugar ao Sol – literalmente.

É mais ou menos por aí, no entanto, que Dupla Jornada começa a mostrar o seu calcanhar de Aquiles. A grande vilã do filme é Audrey (Karla Souza, de How to Get Away with Murder), chefona do crime vampiresco que posa como corretora de imóveis no mundo “civil”. Audrey é também uma imigrante latina, um detalhe que está embedado na construção da personagem de forma inextricável, e que é apresentado como a própria motivação para que ela busque a inversão da hierarquia social entre vampiros e humanos.

O que ela sofreu no passado, a forma como o sonho americano falhou com ela, a torna mais determinada a chacoalhar o status quo no presente, e seu plano é uma alegorização mal disfarçada de medos conservadores: ela quer comprar terrenos e casas por Los Angeles, colocar membros de sua espécie para morar neles, e provê-los com um revolucionário protetor solar que permite que eles andem por aí durante o dia. É o mito racista da “grande substituição”, transformado em fantasia vampiresca e protagonizado por heróis negros como uma tentativa porca de torná-lo à prova de críticas.

Esse é o jeito cínico de ver as coisas, é claro: nada garante que o roteirista Shay Hatten (Army of the DeadJohn Wick 3) e seu colega estreante, Tyler Tice, calcularam cada detalhe deste filme de vampiros de médio orçamento, que provavelmente vai se perder na enxurrada de lançamentos da Netflix, para apoiar uma visão de mundo inflamatoriamente xenofóbica. Mas, seja por intenção ou descuido, tenha esse subtexto surgido só após a escalação de Souza ou estado ali desde o começo, o fato é que assistir Dupla Jornada se torna insuportavelmente incômodo uma vez que você liga os pontos na sua cabeça.

Não há nada que salve o filme, o redima, depois disso: as piadinhas sobre incontinência de um carismático Dave Franco, a performance instantaneamente icônica de Snoop Dogg como um caçador de vampiros veterano, as aparições rápidas de Peter Stormare como um trambiqueiro fã de k-pop, as acrobacias montadas pelo diretor Perry e a aparição sempre bem-vinda de Scott Adkins para chutar algumas bundas vampíricas… Tudo o que poderia fazer de Dupla Jornada um triunfo para o tipo de cinema que ele representa se converte, inevitavelmente, em uma distração temporária, uma cortina de fumaça para esconder suas ideias destrutivas.

E é assim que o que poderia ser uma boa tarde ou noite de sábado na companhia de um balde de pipoca se torna uma viagem intelectualmente agoniante de quase duas horas pelas paisagens ensolaradas de uma Los Angeles em plena crise moral. Se você conseguir desligar o cérebro por tempo o bastante para se divertir, me avise como.

Fonte: Omelete

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