Data Mercantil

‘O Traidor’ de Bellocchio é implacável com a sina de Tommaso Buscetta

Um mafioso é alguém que sabe onde pisa. O que ele não sabe é como será seu próximo passo. Será sobre uma mina deixada pelo inimigo ou sobre uma mina de dinheiro? Sobre um abismo? Essa imprevisibilidade já aparece na primeira entrada de Tommaso Buscetta –a pronúncia é algo como “busxeta”, e não “busqueta”, como queria a Rede Globo, para evitar algum constrangimento em seus jornais.
Enfim, Buscetta está um pouco à margem numa reunião-festa da Cosa Nostra siciliana. É uma reunião onde se tenta acomodar os interesses de dois grupos rivais, e uma festa porque do lado de fora estão as mulheres, as famílias, os mafiosos sem posto de chefia.
Tommaso contempla tudo aquilo com certa inquietação, volta-se e topa com árabes decorativos que cercam a festa. Abre a vestimenta de um deles e encontra uma arma pouco animadora –o segurança da festa seria o segurança de quem, afinal?
A máfia pode ser segura para os mafiosos. Ele faz um juramento de fidelidade ainda jovem e deve seguir assim a vida inteira. Trata-se, portanto, de uma segurança bem insegura.
Buscetta, que se tornou bem conhecido dos brasileiros nos anos 1980, por ter sido preso no Rio de Janeiro, encontrava-se numa espécie de exílio entre nós. Sentiu o cheiro de queimado após a última conciliação entre os grupos rivais. Além do mais, sua mulher era brasileira e ele era um especialista em relações internacionais mafiosas –digamos assim.
Estar no Brasil podia protegê-lo, mas não ao seu grupo, que começou a ser dizimado pelo grupo de Totó Riina. Os massacres sofridos pela gente do “capo” Stefano Bontate nessa disputa incluíam, entre outros, os filhos de Buscetta que haviam ficado na Itália.
Preso no Brasil, torturado barbaramente, conforme o hábito nacional, Buscetta termina deportado e, na Itália, decide falar sobre a máfia. Ou seja, ele rompe a longa tradição de silêncio solidário entre os membros da organização.
Não é muito crível sua alegação de que o fez porque a Cosa Nostra passou a negociar com heroína. É mais plausível acreditar que Tommaso tenha querido contar sua história ao juiz Falcone. Por sentir confiança nele, talvez.
Não importa –era necessário que dissesse o que é pertencer à Cosa Nostra, ser um mafioso, seus direitos, riscos e deveres (deveres, sobretudo), dores e prazeres. O que significam a “famiglia” e a família.
Esse é também o ponto central de Marco Bellocchio em “O Traidor”. Não se trata de investigar a máfia, o que faz ou deixa de fazer, mas as repercussões de seu modo de ser (tipo sociedade secreta) sobre seus membros. Em que é afetada a vida de um homem que, por exemplo, recebe a missão de matar outro homem e deve executá-la mesmo que para isso leve 20 ou 30 anos. Ou que vê sua descendência ameaçada de extinção pelo simples fato de ser sua descendência.
O que significa no caso de um delator como Buscetta evadir-se, fugir de uma organização que, sabe, o perseguirá onde quer que esteja. Entre as cenas mais notáveis do filme está aquela em que, num canto escondido dos EUA, Buscetta topa ir a um restaurante com a família, mas quando um cantor se aproxima entoando uma canção, uma música italiana, ele se retira imediatamente –aquilo não soa como música, mas como ameaça.
A arte de Bellocchio, salvo erro o último representante vivo da última grande geração de cineastas italianos, consiste aqui em encontrar, isolar e desenvolver os pontos básicos de uma atividade secreta, que conhecíamos do cinema seja na versão romântica (“O Poderoso Chefão”), seja na prosaica (“Os Bons Companheiros”).
Desta vez não são os criminosos bem-intencionados de Coppola nem os boçais de Scorsese que dão as tintas. Isso parece interessar a Bellocchio tão pouco quanto a necessidade que levou à criação da Cosa Nostra. É o seu funcionamento e o de seus participantes, tal como se apresenta em determinado momento; e não qualquer momento.
Aliás, talvez o essencial do filme nem esteja nas disputas, delações ou mortes entre os mafiosos, mas nos dois fugazes encontros entre Buscetta e o primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti. No primeiro, cena antológica, encontram-se, de cuecas ambos, na oficina de um alfaiate. Na segunda, num tribunal.
Qual seria o envolvimento possível de um político importantíssimo com a máfia? Foi vítima de chantagem ou ameaça? Seu silêncio absoluto é eloquente: ele não tem o que dizer, seja qual for o motivo. É difícil saber o que é um homem que não pode falar. Tudo que “O Traidor” pode mostrar é o que acontece quando a exceção, Tommaso Buscetta, fala. E ele fala do contágio de Roma pela Cosa Nostra, da Itália pela máfia.
É ao menos o que Bellocchio mostra com clareza implacável.

O TRAIDOR
Avaliação: Ótimo
Onde: Em cartaz nos cinemas
Classificação: 16 anos
Elenco: Maria Fernanda Cândido, Pierfrancesco Favino, Fabrizio Ferracane
Produção: Alemanha/Brasil/França/Itália, 2019
Direção: Marco Bellocchio

Fonte: FolhaPress/Inácio Araujo

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