Cultura
Quarta-feira, 24 de abril de 2024

Jamaica Kincaid narra o esfacelar de uma família em ‘Agora Veja Então’

O casamento dos Sweet, que nunca foi um exemplo de harmonia, chegou ao fim. Depois de anos nutrindo uma raiva implacável pela senhora Sweet –cuja origem, gostos e hábitos ele despreza e a quem evita a todo custo–, o senhor Sweet se apaixona por uma mulher mais jovem. O livro inteiro é uma tentativa coletiva, uma vez que envolve todos os quatro membros da família Sweet, de dar sentido ao que se passa e ao que se passou.
Graças ao estilo único de Jamaica Kincaid, escritora nascida em Antígua e Barbuda e radicada nos Estados Unidos, o que parece um enredo batido resulta em um romance extremamente singular.
O título, “Agora Veja Então”, já entrega a natureza intricada de uma narrativa que dispensa a cronologia a fim de se aproximar, tanto quanto a palavra escrita permite, da simultaneidade. O agora, um presente dilatado no qual o casamento do senhor e da senhora Sweet cai aos pedaços, se mistura a um então que pode remontar a qualquer tempo, inclusive à era Mesozoica.
A voz dominante é a da senhora Sweet, uma mulher que, no agora, tem 52 anos e gosta de escrever sentada à sua mesinha. Nem sempre é possível separar as projeções da senhora Sweet das reflexões ou falas literais dos demais personagens. Não é raro que elas se interseccionem, de modo que uma sentença iniciada por um pode ser concluída por outro.
Kincaid muda depressa e sem qualquer aviso de um ponto de vista para o seguinte, da terceira para a primeira pessoa, do agora para o então. Muita coisa –como situar um acontecimento no tempo, ou em algum ponto intermediário entre a realidade e a fantasia– fica a cargo do leitor.
Isso porque não há divisa alguma entre o real e o fantástico. Lançando mão de toda sorte de exagero e distorção e buscando inspiração no mitológico, a narrativa se aproxima várias vezes do grotesco e do cômico. Os dois filhos dos Sweet se chamam Héracles e Perséfone, escolha que espelha suas construções –as tarefas domésticas do pequeno Héracles vão de lavar e guardar a louça a matar o leão de Nemeia. Não há paranoia, delírio ou desespero nesse apelo à imaginação, mas uma forma singular de enxergar e dar sentido aos acontecimentos.
Em passagens que apostam na repetição como principal recurso, o senhor Sweet se refere à mulher como “bestial”, “incivilizada”, “horrorosa”, “pavorosa”, “aquela puta estúpida que chegou num navio bananeiro” –uma alusão ao fato de que ela emigrou para os Estados Unidos vinda de uma das ilhas do Caribe. Na medida em que não há nenhuma tentativa de encobrir sua presença, o racismo nem sequer pode ser considerado mal disfarçado. Ele é palpável no alheamento e no desconforto que a senhora Sweet experimenta ao lado do homem, ele sim pavoroso, com quem ela imaginou que seria feliz.
Indissociável do racismo, o desprezo do senhor Sweet é feroz e ilimitado e se manifesta de várias maneiras. O melhor exemplo talvez resida na música, para a qual o senhor Sweet parece viver. Orgulhoso das próprias composições dodecafônicas, todas elas concebidas no cômodo para o qual se retira a fim de fugir da senhora Sweet, o arrogante senhor Sweet despreza o calipso caribenho. Presumimos que seja a senhora Sweet que alude à “mixórdia complicada de notas que o senhor Sweet chamava de música”.
É interessante notar como Kincaid dá conta da fragmentação de uma família –dos caquinhos de uma vida conjungal, dos ecos perdidos e soltos do passado, das diferentes identidades e percepções de seus membros– unindo tudo, com o auxílio das ferramentas da imaginação, em um todo indistinguível composto de parágrafos imensos e frases que muitas vezes são labirínticas. Toda a elaboração do romance exige um domínio técnico impressionante.
Em uma entrevista, Kincaid disse que muitas pessoas que leem “Agora Veja Então” não entendem que “tudo é construído com muito cuidado”. Ela tem razão –e por aí se vê que o livro, publicado originalmente em 2013, não costuma ser bem recebido. É fácil se perder naquela complexidade, na barafunda de detalhes, na ausência de balizas claras. É um livro que exige esforço e fôlego. É, no entanto, um esforço que vale a pena. É um fôlego bem empregado.

AGORA VEJA ENTÃO
Preço R$ 69,90 (144 págs.); R$ 39,90 (ebook)
Autor Jamaica Kincaid
Editora Alfaguara
Tradução Cecília Floresta
Avaliação: Ótimo

Fonte: FolhaPress/Camila Van