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‘Escute as Feras’ parte de uma experiência trágica para nos despertar o desejo de conhecer um urso

Outono na Sibéria. Ou, melhor, no extremo leste da Sibéria, a dois largos passos da Manchúria e da Mongólia. Frio danado, neve para dar e vender. Nesse cenário convidativo e romântico para muitos –agreste para a maioria–, uma jovem antropóloga francesa, nascida em 1986, caminha em busca de mais silêncio, mais solidão.
Ela está na região há muitos meses, com o intuito de estudar a tribo dos evenki, a mais numerosa do trecho compreendido entre o rio Yenessei e as montanhas de Kamtchárka. Criadores de renas e pescadores na taiga siberiana, os even, como prefere a edição nacional, são pacíficos e sábios, falam russo fluentemente e escutam a natureza com os ouvidos da alma.
Em uma dessas famílias que moram em cabanas de madeira em forma de cones, Martin encontra abrigo e o carinho da matriarca Dária, que prefere não acreditar em crendices. Como a que determina que o ser humano que entra em contato direto com um urso e sobrevive torna-se um “miêdka” –alguém que não é mais si mesmo, como um vampiro, um zumbi etc.
Mas Dária acredita, sim, e muito em sonhos. E os de sua hóspede são para ela bem claros –antecipam o que vai acontecer naquela tarde outonal de 2015, quando um urso cinza e a antropóloga loira encontram-se frente a frente no sopé de um vulcão. O erro da moça –ou, quem sabe, o acerto– é olhar o bicho nos olhos. O urso, considerado o mais inteligente dos animais, ataca a presa e lhe arranca o maxilar e a maçã do rosto.
Martin se defende com o quebra-gelo e também lhe arranca sangue. A fera ferida inexplicavelmente foge, talvez intimidada pela dor. Ou guiada por um destino que avisa não ser aquele o momento de a mulher morrer. E ela fica diversas horas aguardando por socorro no campo branco coberto de vermelho.
Como bem comenta em seu relato, esta cena ocorreu há pouco tempo, mas poderia ter sido há mil anos. Pois antes de toda a fúria progressista, o homo sapiens incorporava o animismo como natural –todos os seres vivos, homens, animais, plantas e minerais convivendo harmonicamente no ser maior, a Terra.
Martin é levada a um hospital nos moldes soviéticos, como são todos os da grande Mãe Rússia quando distantes de Moscou e São Petersburgo. É operada e põem nela placas metálicas para consertar o estrago. Os dias passados ali são também uma volta ao remoto regime desconhecido, e seu talento como antropóloga ajuda muito uma narrativa em que cheiros, sons e ausências se tornam concretos para quem conhece um pouco daquele ambiente.
A fim de corrigir os erros dos médicos russos, ela é reinternada no hospital de Salpatrière, em Paris, cuja arrogante grife comete novas barbaridades em seu rosto. E por aí vai a fogueira das vaidades profissionais. Até que a antropóloga consegue se esgueirar da casa da mãe em Grenoble e voltar para a Sibéria.
“Quem sai da terra natal/ em outro canto não pára”, diz a canção nordestina. As fronteiras se dissolvem, como para os animais, que desprezam as nacionalidades, os vistos no passaporte e todas as criações prisionais inventadas pelo homem.
Nastassja Martin já havia passado um ano no Alasca estudando a tribo gwich’in, de onde adveio sua premiada tese “Les Âmes Sauvages”, as almas selvagens, de 2016. Outra antecipação, já que este “Croire aux Fauves” , acreditar nas feras, de certa forma, atravessa os limites da antropologia proposta pelas faculdades e avança para uma visão mais ampla sobre a energia que anima todos os viventes.
Uma visão bem mais condizente com o atual momento, em que inculpar animais mortos em feiras chinesas por uma pandemia que simplesmente denuncia a arrogância humana é até grotesco.
Embora tropeçando em falhas de tradução, muito raras na Editora 34 que tantos tesouros nos traz do leste do mundo, o livro é interessantíssimo. Balança as crenças enferrujadas e nos faz querer encontrar um urso frente a frente. Para nos desculparmos e abraçá-lo.

Escute as Feras
Autora: Nastassja Martin.
Tradução: Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann.
Editora 34. R$ 46,00 (111 págs.)
Avaliação: Muito Bom

Fonte: FolhaPress/Vivien Lando

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