Cultura
Quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

‘Desfazenda’ narra velho encontro do nazismo com a escravidão no país

Em 1998, o historiador Sidney Aguilar Filho soube, por acaso, que em antigas construções de uma fazenda em Campina do Monte Alegre, os tijolos possuíam a suástica nazista gravada neles. Aos poucos, foi sendo desvelada uma tenebrosa história em torno da fazenda Cruzeiro do Sul, propriedade da poderosa família Rocha Miranda, que nas décadas de 1930 e 1940 escolheu dezenas de crianças negras de um orfanato no Rio de Janeiro, com aval do poder público, para viverem naquelas terras.
Como mostrou o estudo de Aguilar Filho, a família admiradora do nazismo realizou ali um experimento de escravidão, submetendo as crianças a longas jornadas de trabalho, vida de privações, castigos e sem nenhum pagamento.
Com a adesão de Getúlio Vargas às forças aliadas de combate ao nazismo, a fazenda que marcava até seu gado com a suástica é desmobilizada e os meninos “libertos”, ou melhor, abandonados à própria sorte, o que significou, na maioria dos casos, alcoolismo, violência, desamparo, morte.
A história, contada no documentário “Menino 23”, de Belisário Franca, foi o material originário a partir do qual nasceu “Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar” do grupo O Bonde.
Com atenção e sensibilidade, o grupo de teatro negro percebe que não se trata de um caso particular orquestrado por uma monstruosa família saudosista da escravidão, mas um tipo de constante da sociabilidade brasileira, a última nação do mundo ocidental a abolir a escravidão, o território que mais recebeu escravizados no planeta e também a sede do maior movimento organizado nazista fora da Alemanha, o integralismo.
Como notam bem os artistas do grupo, a fazenda escravocrata em pleno século XX é uma espécie de metáfora do país, sobretudo quando olhado sob perspectiva negra.
O dramaturgo Lucas Moura usa o material como plataforma para criar uma ficção autoral. Na peça, um padre que nunca é visto mantém crianças negras escravizadas com intuito de as proteger de uma guerra da qual também se sabe pouco.
Vemos quatro delas em cena, que se referem sempre a um quinto personagem, Zero. Este possui funções administrativas na propriedade e se vai descobrindo que vive uma constante duplicidade, é escravo e senhor, preto e branco, capataz e vítima.
Mas, diferentemente do ótimo filme de Belisário Franca, que denuncia o caráter tenebroso dos Rocha Miranda e sua relação umbilical com o Brasil, “Desfazenda” se inspira nessa ferida aberta para ir além e se tornar também um gesto de resistência negra.
A poética do “spoken word” -forma de fala recitativa, próxima ao canto do rap, com rítmica cortante e lirismo de temas periféricos- organiza todo o espetáculo e propõe ainda uma atitude coletiva, de olhos acesos e compreensão guerreira da barbárie. Os quatro em cena são múltiplas vozes que formam uma, uma voz que ecoa várias.
O Bonde se torna um coro orquestrado pela diretora Roberta Estrela D’Alva, que traz para o grupo sua longa experiência com esse tipo de construção poética desenvolvida como “teatro hip-hop” no Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.
Em certa altura da peça-filme afirmam que “o contrário do medo é o movimento” e o espetáculo, que fala sobre o medo, busca ser a encarnação desse movimento. Na trama ficcional, o grupo representa as crianças escravizadas nessa fazenda real-fictícia, mas, na lógica narrativa do “spoken word”, também estão ali como eles mesmos, grupo negro ostentando uma reviravolta afirmativa, um revide estético.
No início da peça aparecem textos se remetendo à passagem do poeta revolucionário Aimé Césaire que diz “a vida não é um espetáculo, um mar de dores não é um proscênio, um homem que grita não é igual a um urso que dança”. É um alerta contra a espetacularização do sofrimento, apontando, em contrapartida, para uma cena que encontre o sentido artístico da revolta.
Mas, apesar dessa inversão emblemática, no texto de Lucas Moura, é notável um interesse um pouco desmedido pela rima, pela sofisticação lírica dos versos ou pelas formulações metafóricas enigmáticas, que parecem, às vezes, ganhar mais espaço do que o convite ao raciocínio crítico que emana dos temas.
Também as variações inusitadas da métrica do texto, a orquestração espetacular da recitação e os muitos efeitos formidáveis da filmagem (a cargo de Matheus Brant e Gabriela Miranda) instauram uma atmosfera fascinante que contribui, contudo, para certo apaziguamento estético do grito de dor e de raiva.
Se recusam a exposição do “sangue coagulado” nas vitrinas da cultura, a vontade de denúncia e subversão também fica no limite de se estabilizar como um tipo de lirismo espetacular da resistência.

Fonte: FolhaPress/Paulo Bio