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Em ‘Laços’, trama literária sobre traição e seus efeitos perde sutileza

Adaptar uma obra de um meio a outro supõe sempre uma dificuldade de superação complexa. Espera-se a fidelidade ao original, mas essa mesma fidelidade ao objeto “de partida” pode derrubar o sucesso da obra “de chegada”.
A instabilidade desse equilíbrio é proporcional à dimensão artística do original. Trocando em miúdos, é mais fácil adaptar um romance convencional, digamos um policial com começo, meio e fim linearmente organizados, do que uma obra como “Laços”, de Domenico Starnone.
O romance, publicado no Brasil pela Todavia em 2017, é um livro sóbrio e conciso sobre o peso de um adultério na vida de uma família. Nele, vemos a partir de um fato no presente -a invasão do apartamento dos idosos Aldo e Vanda-, a reconstituição, em meio à desordem, do passado dos dois e da família que formaram.
O livro, que mesclava algo de thriller ao drama psicológico, foi transposto para o cinema em 2020 por Daniele Luchetti.
Experiente, Luchetti esteve à frente de projetos que falam das divisões políticas de seu país, como “Meu Irmão É Filho Único” (2007), acerca da disputa entre comunistas e fascistas. Na TV, responde por parte da terceira e ainda inédita temporada da série “A Amiga Genial”, excelente adaptação da tetralogia assinada por Elena Ferrante.
“Laços”, que abriu o Festival de Veneza no ano passado, guarda um parentesco indireto com esse último trabalho.
Em várias ocasiões, especulou-se que Starnone, autor do romance, seria a pessoa por trás do fenômeno Ferrante. Uma investigação conduzida por um jornalista italiano cravou que ela seria na verdade a tradutora Anita Raja, mulher do escritor.
Raja, como Starnone e os personagens de Ferrante e os de “Laços” são napolitanos. E em Nápoles, no início dos anos 1980, começa o filme de Luchetti.
Somos apresentados a Aldo e Vanda, ele radialista, condutor de um programa sobre livros na RAI, em Roma, e ela, dona de casa. Vige um ambiente de harmonia familiar nos momentos domésticos com os filhos, Anna e Sandro, que subitamente se desfaz com a revelação de Aldo de que fora infiel.
O livro se abre já com os efeitos da traição, narrado nas cartas de Vanda a Aldo. Que esse cotidiano que vemos na tela não seja assim descrito no livro não é em si um pecado, mas antes necessidade do roteiro. O problema aparece no tom adotado ao transpor para imagens o que só era insinuado.
As frases de efeito dramático que, no livro, são escritas por Vanda, e não ditas, se traduz em falas desesperadas que a tornam patética. Encenados, os acontecimentos das cartas perdem qualquer contenção.
A amante, Lidia, apenas recordada pelos demais no livro, ganha um peso muito maior na trama cinematográfica. O encanto evidente de Linda Caridi acentua os aspectos menos positivos de Vanda, de certa forma justificando o desinteresse de Aldo pela mulher e filhos.
Assim, Luchetti fez um filme que reforça um determinado clichê italiano, o pendor pelo excesso de emoção, ausente do livro de Starnone.
Não ajuda que, de chofre, vejamos os carismáticos Lugi Lo Cascio e Alba Rohrwacher substituídos por Silvio Orlando e Laura Morante. A qualidade da atuação da dupla mais velha não basta para dar brilho à amargura do casamento refeito.
A reconstituição desse vínculo é outro ponto que sofre.Falha o esforço de levar à tela, em duas linearidades paralelas, a do presente e do passado, uma trama que no romance é composta pelas lembranças e conjecturas de Aldo, narrador da maior parte do livro.
Quando a bela e frágil Vanda se torna uma mulher seca, e o caloroso Aldo, um homem anódino, fica difícil entender por que reataram seus laços.
Se a literalidade não é um critério para determinar a qualidade de uma adaptação, é eloquente, neste caso, que os momentos mais tocantes sejam aqueles em que o texto de Starnone se preserva.
Não se criticam aqui opções menores do roteiro. O que está em pauta é o movimento que borra a sutileza da obra literária ao transformá-la em imagens.
Exemplar dessa perda de agudeza é o enfoque dado à caixa de Praga. No livro, o objeto trazido de viagem por Aldo se encontra longe dos olhos, banido por Vanda para uma prateleira alta. No filme, fica à vista de qualquer pessoa que chegue à casa. Assim como ela se torna evidente em cena, também fica demasiado explícito o que ela tenta esconder.

Fonte: FolhaPress/Francesca Angiolillo

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