Cultura
Sexta-feira, 29 de março de 2024

Don DeLillo imagina desastre tecnológico e diz que internet pode ruir a qualquer instante

WALTER PORTO –

Nesta semana, uma queda na internet derrubou alguns pilares da comunicação do nosso tempo -plataformas de mídia como o jornal The New York Times e a rede CNN, sites oficiais do governo britânico, serviços como Amazon e Spotify. O problema se resolveu em cerca de uma hora, mas durou o suficiente para dar um susto em muita gente. Não em Don DeLillo.
Na visão deste que é um dos escritores mais aclamados dos Estados Unidos, a ameaça constante de colapso está na espinha dorsal das novas tecnologias. E, de fato, ele construiu todo o seu novo romance, “O Silêncio”, em torno de uma pane generalizada que guarda arrepiantes similaridades com o episódio de agora.
“O que a tecnologia é capaz de fazer se torna o que precisamos desesperadamente fazer. Nós seguimos a tecnologia aonde ela nos leva. E ela sempre parece estar à beira do desastre”, afirma o autor. “A gente senta, olha e escuta, mas há sempre uma possibilidade quase iminente de que tudo vá ruir.”
Em “O Silêncio”, tudo vem abaixo. Cenas inquietantes, como um avião em que tudo se apaga em pleno ar, se alternam com perturbações mais domésticas, como um televisor que desliga durante o maior evento esportivo do ano e tira do eixo um professor que havia apostado dinheiro na partida.
O livro não oferece qualquer indício de explicação do que aconteceu. O propósito dessa novela curta, de pouco mais de cem páginas, é mais tecer um comentário aflitivo sobre o poder –não só subjetivo, mas muito real– das telas pretas sobre a humanidade.
DeLillo não tem celular e não usa computador. Para dar esta entrevista, o escritor de 84 anos pediu o número do repórter para que ligasse, ele mesmo, de seu telefone fixo em Bronxville, no subúrbio de Nova York.
“Não tenho nada contra celulares, minha mulher usa todo tipo de ajuda tecnológica no nosso apartamento. Eu só não queria um para mim mesmo”, diz. “Eu sou um homem que coloca palavras no papel. Foi isso que me guiou desde que eu tinha 20 anos, e não mudei muito.”
Essa resistência circunspecta, contudo, passa longe de estereotipar o autor como um rabugento que ralha contra as traquitanas modernas. DeLillo diz que seu consumo de filmes na TV foi voraz durante a quarentena e vê com bons olhos que suas obras sejam lidas em ebooks.
“Eu só não quero trabalhar direto na tela. Não estou trabalhando hoje em nova ficção, mas quando acontece de a minha máquina de escrever precisar de conserto, eu uso os velhos papel e caneta. Isso me ajuda a ver palavras e frases nas páginas, a encontrar correspondências visuais. O elemento visual sempre foi importante para mim.”
O escritor demarca o começo dessa atenção mais integral à disposição das letras nas páginas com “Os Nomes”, de 1982, um grande estudo sobre a língua e a cultura dos Estados Unidos que veio logo antes daquele que talvez seja seu trabalho mais celebrado até hoje, “Ruído Branco”.
“O Silêncio” não é a primeira incursão de DeLillo ao fim do mundo. Em “Ruído Branco” –que terá em breve uma adaptação para o cinema feita por Noah Baumbach, com Adam Driver e Greta Gerwig–, ele já explorava a tensa relação das pessoas com a morte ao imaginar um cataclisma ambiental.
Essa criatividade peculiar de DeLillo o põe, há tempos, na vanguarda do apocalipse. Naquele romance de 1985, ele já fazia comentários pertinentes a uma cultura que vê a crença nos fatos científicos se desmancharem. “A família é o berço da desinformação do mundo”, dizia um trecho que nem chegava a sonhar com os grupos de WhatsApp.
Ali também já se anunciava a impotência absoluta da humanidade frente ao progresso científico. Não é só que não temos controle sobre as tecnologias que usamos diariamente e que regem nossa estrutura social e econômica; não chegamos nem a entender como funcionam.
É um tema no qual “O Silêncio” avança. “Não sei o que aconteceu, mas acabou com a nossa tecnologia”, diz um personagem sobre o evento traumático do livro. “A própria palavra me parece desatualizada, perdida no espaço. Cadê a nossa autoridade para controlar os nossos equipamentos seguros, nossas capacidades de encriptação, nossos tuítes, trolls e bots. Será que tudo no ciberespaço está sujeito a distorção e roubo? E tudo o que a gente pode fazer é ficar maldizendo a nossa sorte?”
A distopia, se é que dá para chamar assim, acontece num mundo que acabou de se livrar do coronavírus –algo que não parece tão distante numa Nova York que começa a enxergar a vida voltando ao normal. “A questão é se minha vida já foi normal algum dia”, diz o escritor, com uma risada rouca, quando o repórter faz este comentário.
“Minha vida está bem diferente, mas é principalmente por causa da minha idade. Eu viajava muito para pesquisar para meus livros, para conhecer editores e jornalistas de diferentes países. Isso tudo acabou, porque agora estou velho demais”, afirma o autor, já vacinado, que tem como aventuras agora dar uma caminhada nos arredores de casa com a mulher, Barbara.
Quanto à Covid, diz DeLillo, “é inevitável” que apareça com maior ou menor teor apocalíptico na ficção que surgirá nos próximos anos. Antes de continuar, ele puxa um pouco pela memória.
“Muito tempo atrás, uns 40 anos talvez, as pessoas estavam começando a achar que a ficção estava morta. Mas a ficção continua a florescer, desde que homens e mulheres tenham imaginação e a usem para criar histórias. Não acho que vai acabar enquanto tivermos civilização.”

Fonte: FolhaPress