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Quinta-feira, 28 de março de 2024

Hospitais flexibilizam protocolo e autorizam visita a pacientes com Covid em SP

THAIZA PAULUZE –

Sozinha, assim que foi internada com Covid-19, a empresária Luciane da Costa Hwan, 54, via um homem de preto sempre ali, à espreita. Mas quem realmente estava no quarto ao lado era seu marido, André Hawn, 65, também em estado grave na UTI do Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista.
Após dez dias intubada, ela pôde enfim segurar a mão do marido, que tinha acabado de ter alta, e da filha do casal, de 29 anos, que conseguiu autorização para visitá-los presencialmente -mesmo sem ter tomado a vacina contra o coronavírus. A presença dos dois, dizem os médicos, vai ajudar na recuperação da empresária.
Embora parecer do Ministério da Saúde e orientação da Prefeitura de São Paulo proíbam visitas a internados por Covid-19, alguns hospitais da cidade começaram a permiti-las em unidades de terapia intensiva, semi intensiva e enfermarias.
No Sírio-Libanês, por exemplo, elas são autorizadas tanto na UTI quanto no quarto. No primeiro caso, só um familiar por dia, durante 30 minutos. No segundo, o acompanhante pode ficar durante todo o tempo. O hospital fornece máscara N95, único item obrigatório, segundo relatado à Folha.
Diretora de operações do Einstein, Claudia Laselva explica que os protocolos foram mudando ao longo da pandemia, com aprendizados sobre o vírus e o tratamento. Visitas são exceções, e a decisão de autorizá-las é tomada pela equipe multidisplicinar, considerando os riscos e os benefícios.
No Einstein, André Hwan comemora com a esposa os pequenos progressos que ela faz. “Já consigo tomar água sozinha”, diz Luciane, que continua recebendo oxigênio. “Mas ela queria mesmo era uma coca-cola ou um [drinque] sex on the beach”, responde a filha, rindo.
Para Hwan, “ainda está enraizado que, se você pega Covid, morre sozinho”. E, diz, “isso dá um medo que você não imagina”.
No Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch, no M’Boi Mirim, zona sul da capital paulista, é feita a “visita do adeus”. A família pode se despedir de pacientes terminais de Covid-19 online, por videochamada, ou presencialmente.
Caso a opção seja pela visita, os parentes são alertados sobre os riscos de contaminação e recebem equipamentos de proteção individual. Também é necessário manter distância do paciente e evitar familiares idosos ou com comorbidades.
“A gente autoriza ser presencial quando a família tem dificuldade de acesso a videochamada ou quando está custando a aceitar a morte”, afirma Camila Bosco, assistente administrativa do hospital. “Na segunda onda, vimos pacientes morrendo muito rápido e mais jovens. Então abrimos exceções. As pessoas têm ciência do risco, mas veem o parente de longe e com toda a paramentação [máscara, luva, touca, avental].”
O último parecer do Ministério da Saúde sobre o assunto é ainda de 2020 e diz que os serviços de saúde que atendem casos de Covid devem suspender as visitas aos infectados.
Caso o serviço não possua fluxo diferenciado para pacientes em tratamento de outras doenças e seus acompanhantes, recomenda-se a suspensão de todas as visitas.
Segundo o texto, proibem-se “acompanhantes para os pacientes com síndrome gripal (exceto em condições previstas por lei: crianças, idosos e portadores de necessidades especiais)”.
Procurada, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Saúde, afirmou que segue a recomendação federal. “Permanecem suspensas visitas aos pacientes internados pela Covid-19 em todas as unidades hospitalares municipais. O protocolo está vigente desde 15 de abril do ano passado e não foi alterado até o dia de hoje”, disse, em nota.
Segundo a pasta, em casos excepcionais, poderá ser autorizada a entrada para visita de acompanhante para crianças e pacientes com algum grau de deficiência. Já para os internados em UTI, está mantida a suspensão.
No Rio de Janeiro, a partir desta segunda-feira (17), pessoas totalmente imunizadas contra o vírus (14 dias após a segunda dose) podem visitar pacientes com Covid-19 internados. A permissão está em uma resolução publicada no Diário Oficial do Município e vale pra toda a rede -pública e privada.
As unidades de saúde têm autonomia para definir as regras, mas é obrigatório o uso de máscara e a apresentação do comprovante de vacinação.
Gulnar Azevedo, professora de epidemiologia da Uerj e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, critica a visitação presencial, independentemente da imunização.
“Acho arriscada e prematura a decisão, porque pode levar a um risco maior de infecção na unidade hospitalar, inclusive de outros agentes infecciosos, e atrapalhar a dinâmica dos cuidados intensivos em um momento em que a pandemia ainda está em uma patamar muito elevado de casos e mortes.”
Para ela, “mesmo entre os já vacinados, precisaríamos ter mais segurança para propor, porque a imunização não impede a transmissão do vírus”. Em sua opinião, “seria mais correto investir no reforço das visitas virtuais”.
Videochamada Para a maioria dos pacientes internados com Covid, a videochamada é a única alternativa de interação com os familiares. Mas mesmo estas viraram alvo de debate entre médicos e o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de SP).
No fim de abril, um parecer do órgão proibiu filmagens na UTI e nas emergências, em nome do sigilo médico e da privacidade dos pacientes. O conselho também entende ser “absolutamente proibida” a exposição de pacientes sedados ou em coma, que não poderiam expressar consentimento ou ter “a alegada interação com os familiares”.
Criticado, o órgão relativizou a decisão. “O Cremesp esclarece que o parecer não proíbe a realização de vídeochamadas, uma vez que se trata de uma opinião, servindo apenas como orientação. Não possui a mesma força que as leis ou resoluções.”
Para o médico Gerson Salvador, autor do blog Linha de Frente na Folha, os profissionais não podem ignorar um parecer do órgão. “É uma recomendação que direciona a uma determinada conduta. É uma autarquia pública federal, que visa garantir a prática ética da medicina”, diz.
A partir da repercussão negativa, diz ele, “o conselho recuou e partiu para desqualificar a imprensa, dizendo que teria sido tendenciosa”.
Salvador afirma que o conselho “não têm competência para proibir a videochamada, mas pode, sim, impedir a participação do médico nesses momentos”. A seu ver, o Cremesp deveria produzir outro parecer, que suspenda o original.
Alguns médicos dizem se sentir censurados pelo órgão por se posicionarem contra o parecer. Ao menos duas profissionais, a geriatra paliativista Ana Claudia Quintana e a advogada especializada em direito médico Luciana Dadalto, receberam notificações extrajudiciais do Cremesp para retirar do ar postagens sobre o direito de pacientes de se despediram virtualmente antes de serem intubados.
Quem trabalha na linha de frente refuta o argumento do conselho sobre privacidade.
“Não existe exposição vexatória nessas ligações. Estamos falando de um pai e um filho. Quanto um paciente com 28 dias de intubação sente falta de ouvir a voz dos netos? Um ‘papai, fiz esse desenho para você’ ou um ‘amor, te amo, fica firme’?”, defende Juliane Olivares, enfermeira coordenadora da UTI da rede de hospitais São Camilo.
As chamadas de vídeo são rotina diária da rede, mas as visitas presenciais ainda são vetadas.Um prontuário traz informações como a música de que a pessoa mais gosta, que é colocada para tocar.
“A Covid pede um distanciamento muito grande. Na chamada, você vê o familiar ainda respirando, profere palavras de carinho. Uns se despedem, dão a senha do banco, explicam pendências na vida, caso não voltem. Não tem coração que não se abale, olhos que não derramem lágrimas”, conta Olivares.
A enfermeira Fernanda Fernandes, do hospital do M’Boi Mirim, associa visitas virtuais a uma melhora clínica imediata. “Às vezes um paciente está apático, sem ajudar o próprio tratamento, e não vê a família há cinco dias. Quando a gente liga o vídeo, a saturação e a frequência cardíaca melhoram, ele passa a comer mais.”
No pico da segunda onda da doença, em março deste ano, o hospital fez 300 videochamadas. Também criou um prontuário afetivo, com um pouco da história do internado: como gosta de ser chamado, a música favorita, as fotos com a família e o cachorrinho.
Internado na unidade municipal, o motorista de aplicativo Marcelo Spirlandeli, 48, chora ao ver a esposa, o filho, o irmão e os amigos após uma semana. Ele promete: “Amorzinho, logo logo tô em casa. Vou fazer a barba, ficar bonito”. Dá bronca: “Obedece seu tio”. Aponta: “Esse aqui foi quem me alertou que não era só uma gripezinha”. E cobra: “Quero ver quem vai fazer o churrasco quando eu sair daqui”.
Os 10 minutos, “deram para matar um pouco a saudade, aliviar a alma. Dá esperança de sair logo, de ficar com eles”, tenta resumir Spirlandeli.
Para a cineasta Fernanda Tâmara, 31, as chamadas de vídeo ajudaram seu pai a sair da UTI. O dentista de 58 anos foi internado no fim de março, e a família tinha dificuldades para conseguir notícias no hospital em Petrópolis, região serrana do Rio.
Antes de ser intubado, ele pediu por uma videochamada. “Foi um dos piores momentos da minha vida. Você está vendo a pessoa ali viva, mas tem que se despedir dela”, conta a filha, que falava com o pai mesmo sedado.
Ela diz que a partir daí ele começou a melhorar, até ter alta em 8 de abril. “Ele diz que a família deu ânimo, força. A gente falava ‘aguenta firme, estamos te esperando’.”
Foi por videochamada que o publicitário Fabrício Freire, 33, ouviu as últimas palavras da mãe, vítima da Covid aos 59 anos em setembro do ano passado. Durante a pandemia, eles se viam pouco, para não colocá-la em risco.
Na UTI, era essa ligação que a fazia “manter alguma sanidade” e matar a saudade. Na última, ele disse: “Mãe, te amo”. “Ela levantou a cabeça e respondeu: ‘Fabrício, eu te amo muito, muito’. Se não tivesse chamada de vídeo, não teria essas últimas lembranças, conversas e o último ‘eu te amo.’

Fonte: FolhaPress