RAMON VITRAL
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O quadrinista escocês Tom Gauld nasceu em 1976, quatro anos após a última missão de astronautas da Nasa na Lua. Ele lamenta nunca ter testemunhado ao vivo um passeio humano pelo solo lunar e não esconde sua decepção com o término das visitas esporádicas humanas ao satélite natural que circunda a Terra. Ainda assim, ele compreende esses nossos quase 50 anos de ausência por lá.
“Acho que depois de um ou dois dias, a Lua seria um lugar um tanto chato para se visitar”, diz o artista. Colaborador dos jornais The Guardian e The New York Times e das revistas The New Yorker e New Scientist, Gauld é conhecido principalmente por suas tiras com temáticas científicas e filosóficas, com bonequinhos de palito e hypadas por pesquisadores e acadêmicos nas redes sociais.
Ele também é o autor do recém-lançado “Guarda Lunar”, um de seus poucos trabalhos longos, uma HQ sobre a rotina banal e pouco inspirada do último policial em serviço na Lua. O álbum de 2016 é a segunda obra longa do artista britânico publicada no Brasil. A primeira foi “Golias”, em 2019, sobre o embate bíblico entre o temido gigante filisteu contra o destemido e diminuto israelita Davi.
Em “Golias”, Gauld optou por narrar sua história do ponto de vista do dito vilão, um soldado burocrata e pouco inspirado lembrado por seus superiores por seus quase três metros e por isso escolhido para encarar um jovem guerreiro que conta com o apoio de Deus. “Guarda Lunar” também quebra algumas expectativas ao fugir da esperada vida de aventuras de um patrulheiro espacial.
O plano original de Gauld era contar sua história de ficção científica em um quadrinho curto. Seriam no máximo 20 páginas, mas a piada fugiu ao seu controle.
“Eu queria usar a linguagem da ficção científica para contar uma história sem armas, guerra, morte e nem mesmo muita ação, sabendo que a diversão viria em parte das memórias do público de toda a ficção científica emocionante, grandiosa e cheia de ação que eles já viram”.
As 96 páginas em cinza e azul de “Guarda Lunar” antagonizam os épicos de ficção científica consumidos por Gauld na infância. Em meio ao retorno crescente dos residentes lunares à Terra e sem crimes reportados nos últimos tempos, o policial é até procurado para ajudar nas buscas por um cachorrinho desaparecido, mas não há muito mais o que fazer.
Em contraponto às rondas ordinárias do guarda, Gauld investe nos cenários inóspitos e nas tecnologias retrôs apresentados com seu traço minimalista e em um pano de fundo marcado pelo desinteresse crescente da população terrestre na vida na Lua.
“Acho que um dos prazeres da ficção científica é a sensação de visitar um mundo estranho fictício”, diz Gauld. “Não foram os enredos de “Blade Runner” e “2001” que chamaram a minha atenção, mas seus mundos intrincadamente imaginados e convincentes. Fico feliz em diminuir o ritmo da história, me permitindo revelar todos esses detalhes.”
O ritmo, aliás, é um dos elementos mais característicos dos trabalhos de Gauld. Com mais espaço do que costuma ter em suas tiras, ele investe na lentidão. Entre suas principais influências estão os filmes do cineasta Jim Jarmusch, referência para Gauld na calma com que narra suas histórias.
“Queria fazer algo assim nos meus quadrinhos. Descobri como é divertido brincar com o tempo nos quadrinhos pela distribuição dos painéis na página, e gosto de como você pode sugerir lentidão e passagem do tempo sem entediar o público.”
Ele também não esconde seu culto à melancolia: “Eu com certeza fui atrás dela. A arte que eu mais gosto costuma ser triste e engraçada ao mesmo tempo (mas não completamente sombria). Você teria que perguntar a um psicólogo por que essa combinação me atrai tanto, mas atrai”.
Atualmente focado na finalização de seu primeiro livro infantil, um conto de fadas com lançamento previsto para agosto no Reino Unido e nos Estados Unidos, Gauld diz que as imposições de isolamento social decorrentes da pandemia do novo coronavírus não impactaram sua rotina profissional, mas ele notou um interesse crescente em torno de suas tiras sobre ciência.
Ele celebra que as preocupações com a pandemia e a comoção com o desenvolvimento de vacinas estejam impulsionando a presença da ciência na imaginação popular e oferecendo maior fonte de inspiração para seus quadrinhos. Ao mesmo tempo, ele percebe uma presença cada vez mais constante de conspiracionistas respondendo aos seus trabalhos.
“Quando as minhas tiras são tuitadas pelo Guardian ou pela New Scientist, frequentemente há alguma resposta a elas que nada tem a ver com o meu trabalho, mas partem de uma pessoa furiosa com uma teoria conspiratória para compartilhar. Isso me faz perceber quantas teorias malucas existem e quanta energia algumas pessoas colocam para promover essas coisas.”
Cultura
Domingo, 6 de outubro de 2024
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