REINALDO JOSE LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – A maioria dos personagens da Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, nunca achou que iria para o Céu quando morresse “”e muitos deles nem acreditavam na ideia de vida após a morte.
A afirmação pode soar esquisitíssima para cristãos e judeus de hoje, mas ajuda a mostrar como as crenças sobre o Além das religiões do Ocidente são resultado de uma evolução lenta e complicada, que transcende os próprios textos bíblicos.
Esse trajeto teológico tortuoso está contado em “Heaven and Hell: A History of the Afterlife” (“Céu e Inferno: Uma História da Vida Após a Morte”), mais recente livro do historiador americano Bart Denton Ehrman.
O pesquisador da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (Estados Unidos) é autor de uma série de best-sellers sobre a figura histórica de Jesus e as origens do cristianismo, mas desta vez precisou analisar também aspectos mais amplos da cultura da Antiguidade, dos babilônios aos filósofos gregos e romanos.
Levar em conta tal leque de influências é indispensável porque, paradoxalmente, as crenças de muitos católicos e protestantes sobre o tema talvez se inspirem mais em certos pensadores pagãos do que nos livros que vão do Gênesis ao Apocalipse.
Quando o assunto são as recompensas ou punições que os ocidentais esperam receber na hora da morte, as ideias do ateniense Platão e do romano Virgílio são tão importantes quanto as do profeta Daniel e do apóstolo Paulo, explica Ehrman.
A questão é que, nas antigas culturas do Mediterrâneo que inspiraram as narrativas do Antigo Testamento ou Bíblia hebraica, a ideia de que a alma de cada pessoa seria julgada por seus atos e receberia diferentes destinos conforme o bem ou o mal que praticou em vida era relativamente rara.
Em vez de rezar para ir para o Céu, a maioria das pessoas cultuava Deus ou os deuses na esperança de ter uma vida feliz aqui mesmo na Terra. Quando a morte vinha, acreditava-se que praticamente todos os defuntos, sem distinção, passariam o resto da eternidade num Reino dos Mortos crepuscular, tedioso e imutável, onde não haveria nem recompensa nem punição.
É mais ou menos o que vemos na ideia grega do Hades. Era preciso ser um inimigo declarado e ferrenho dos deuses, ou então um queridinho das divindades, para sofrer tormentos ou gozar de delícias de maneira individual.
É possível que o lugar designado como Sheol pelos antigos israelitas fosse similar ao Hades.
Numa passagem famosa do Antigo Testamento, uma bruxa consegue invocar o espírito do profeta Samuel, que ela vê subindo do chão e chama de “elohim”, ou “ser divino” em hebraico. A cena é parecida com outra protagonizada pelo herói grego Odisseu (ou Ulisses) no poema “Odisseia”, de Homero.
No entanto, também é possível interpretar as referências ao Sheol simplesmente como sinônimo de túmulo ou sepultura, diz Ehrman.
Nesse caso, os antigos israelitas não apenas não veriam diferença entre os destinos dos bons e dos maus após a morte como também acreditariam que, uma vez que o sopro de Deus deixa o corpo humano, nada mais resta.
Por volta de 400 a.C., do lado europeu do Mediterrâneo, o filósofo Platão, em seus diálogos sobre a natureza da realidade, passou a especular que a alma humana era imortal e que todos recebem recompensas ou punições de acordo com seus atos após deixarem este mundo.
Esse é o mote de textos platônicos como o chamado Mito de Er, conclusão da obra “República”, na qual o pensador ateniense também defende a existência da reencarnação.
Alguns séculos mais tarde, quando o antigo território israelita passaria a ser dominado por impérios de cultura grega, as ideias tipicamente helênicas sobre o pós-vida começariam a circular entre os judeus.
Mas os autores dos livros bíblicos tardios adotam uma perspectiva peculiar sobre o tema.
Em vez de falar da imortalidade da alma, escritores como o responsável pelo Livro de Daniel imaginam um julgamento de cada ser humano no fim dos tempos. Nessa ocasião, ocorreria a ressurreição de todas as pessoas, as quais seriam recompensadas ou punidas por Deus de acordo com seus atos.
Essa crença parece ter surgido no momento em que alguns judeus estavam sendo perseguidos por governantes pagãos e forçados a abdicar de sua fé e práticas tradicionais.
Se as pessoas vistas como fiéis a Deus estavam sofrendo e não parecia haver esperança para que a justiça prevalecesse nesta vida, esses antigos pensadores judaicos agora propunham que esse estado de coisas seria corrigido com o Juízo Final.
Tudo indica que a visão exposta no Livro de Daniel era basicamente a abraçada por Jesus de Nazaré em suas pregações por volta do ano 30 d.C. Cristo, argumenta Ehrman, era um profeta apocalíptico: previa para breve o fim do domínio do mal no mundo, o início do reino de Deus e a ressurreição dos mortos.
Depois de sua morte, ao menos alguns de seus seguidores passaram a crer que ele tinha ressuscitado e mantiveram essa fé num Juízo Final iminente, como mostram as cartas escritas pelo apóstolo Paulo (mais antigos textos cristãos que chegaram até nós).
A questão é que as décadas foram passando, sem que o esperado Apocalipse viesse.
Por conta disso, embora a crença na ressurreição dos mortos nunca fosse abandonada, começou a se popularizar a ideia de que haveria também uma recompensa ou punição “temporária”, antes do fim dos tempos.
Por volta do ano 150 d.C., por exemplo, surge um dos primeiros textos a detalhar como seriam as penas do Inferno, o chamado Apocalipse de Pedro (segundo a narrativa, os blasfemadores passariam a eternidade pendurados pela língua).
O último passo desse processo, já no meio da Idade Média, foi a definição da doutrina do Purgatório, um reino espiritual onde as almas que escaparam do Inferno, mas que ainda não estão prontas para atingir o Céu, passariam por longas temporadas de purificação, que poderiam ser aceleradas pelas orações dos vivos.
Disputas acerca dessa doutrina acabariam, aliás, tendo repercussões sociais das mais sérias no século 16, desencadeando a Reforma Protestante e a divisão da Europa cristã. Como acontece ainda hoje, teologia e política com frequência andavam juntas.
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