LEONARDO SANCHEZ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Durante a ditadura militar, o pai de Carol Benjamin foi preso, torturado e exilado. Sua avó, de uma dona de casa, passou a ser militante, para que pudesse libertar o filho dos horrores que sofria. Mesmo com o silêncio de César Benjamin sobre o período, a filha sentiu que era necessário levar essa história para as telas.
Ela agora estreia, no festival É Tudo Verdade, o documentário “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”, em que narra como a prisão de seu pai impactou várias gerações da família. Ele preferiu não participar das gravações, mas ela sentiu que era justamente por isso que o filme precisava ser feito.
“Eu não esperava que meu pai tivesse essa reação. Eu queria que ele me desse um depoimento, então a negativa dele foi uma grande surpresa”, diz a cineasta. “Como documentarista, eu não pude me esquivar dessa questão. Esse silêncio me impactou de tal maneira que eu achei importante pontuar isso no filme. Existe nele um paralelo com a história política do Brasil, um país que não gosta de falar do passado.”
É para o passado, aliás, que o É Tudo Verdade parece se voltar neste ano, com diversos filmes de sua programação abordando não só os anos de ditadura no Brasil, como também outras formas de autoritarismos do passado -mas que dão sinais de retorno em muitos países.
Essas obras serão exibidas entre esta quarta-feira e o dia 4 de outubro, quando o É Tudo Verdade, maior festival de documentários da América Latina, comemora seus 25 anos. Originalmente, a edição deste ano do evento aconteceria em março, mas, com a chegada da pandemia de coronavírus ao Brasil, ela precisou ser adiada.
Depois de passar por uma ampla reformulação com pequenos ajustes em seu lineup, o festival chega ao público com sua fatia mais prestigiosa -aquela com os filmes em competição. As exibições ocorrem, quase que totalmente, online e seguirão uma lógica parecida com a de festivais presenciais, com horários definidos para que o público assista às obras.
Uma parte do evento, no entanto, será presencial, já que a noite de abertura, só para convidados, acontece no Belas Artes Drive-in, no Memorial da América Latina, em São Paulo. O longa da ocasião é o chileno “A Cordilheira dos Sonhos”, de Patricio Guzmán, que também estará disponível por streaming, para o público geral. A internet acabou estabelecendo um monopólio da programação do É Tudo Verdade. Mesmo no primeiro semestre, ela já havia servido de solução para que alguns filmes de seções paralelas pudessem ser exibidos próximos às datas antes planejadas para esta 25ª edição.
“Diante do início da pandemia, o nosso pensamento foi de fazer a maior parte do que não era competitivo naquele momento, porque seria um gesto de cumplicidade e de solidariedade com o público do festival e com os nossos parceiros”, explica Amir Labaki, diretor do É Tudo Verdade. “Pensamos, então, em preservar a parte competitiva para o futuro.”
A expectativa era que a pandemia desse sinais de melhora poucos meses depois. Mas, diante do ainda incerto e problemático cenário no Brasil, Labaki decidiu seguir em frente neste novo formato.
“Fico te Devendo uma Carta para o Brasil”, que já havia sido anunciado lá atrás, continuou na seleção, dando o tom do evento deste ano, com produções nacionais e estrangeiras que abordam temas como extremismo, fake news e violência de estado.
“Festival é espelho e, se o mundo está atolado numa retomada autoritária, é natural e saudável que o cinema documental reflita isso. E, a favor dos documentários, nós temos a agilidade desse gênero”, diz Labaki, sobre a seleção.
“Uma das suas funções é nos ajudar a pensar o mundo, então não é à toa que neste ano a gente tenha filmes como ‘Silêncio de Rádio’, que mostra essa praga que voltou a se disseminar no mundo inteiro.”
A praga que Labaki menciona é a censura, tema central do filme dirigido por Juliana Fanjul, que integra a mostra competitiva de longas internacionais do É Tudo Verdade. O documentário acompanha a demissão injustificada de uma jornalista mexicana depois da cobertura de um caso de conflito de interesses envolvendo o então presidente Enrique Peña Nieto.
Também entre os longas estrangeiros, os filmes que de alguma forma dialogam com o autoritarismo são “1982”, sobre a campanha midiática da ditadura argentina durante a Guerra das Malvinas, “Colectiv”, sobre uma fraude no sistema de saúde romeno trazida à tona por jornalistas, “Golpe 53”, sobre a derrubada do governo iraniano arquitetada por agentes americanos e britânicos, “O Rei Nu”, sobre movimentos civis no Irã e na Polônia em 1970 e 1980, e “O Rolo Proibido”, sobre cineastas afegãos dispostos a combater o extremismo do Taleban.
Os assuntos levantados por essas produções também respingam nas seções de curtas do É Tudo Verdade e, claro, em outros selecionados da mostra competitiva de longas brasileiros.
Nela, aparecem, por exemplo, “Libelu – Abaixo a Ditadura”, sobre a atuação do movimento estudantil nos anos 1970, “A Ponte de Bambu”, que aborda a repressão do governo na China, e “Segredos do Putumayo”, centrado no irlandês Roger Casement, que trabalhou para denunciar violações de direitos humanos.
Mas “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil” talvez seja o filme que dialoga de forma mais contundente com o presente contexto de ascensão de um discurso autoritário e conservador –construindo, para isso, uma ponte entre o período ditatorial e alguns dos discursos de Jair Bolsonaro.
“Eu já estava fazendo o filme antes da eleição dele, mas esse novo contexto político me impactou e acabou entrando no documentário. Eu acrescentei uma camada ao filme, porque eu acredito que o cinema é sempre político, sempre depende de um contexto. Eu não poderia lançar um longa sobre a ditadura sem fazer uma atualização”, diz Carol Benjamin, a diretora.
“É devastador ver gente defendendo a ditadura hoje em dia. É de uma tristeza profunda ouvir alguém dizer que só sofreu quem merecia. Por isso achei que era importante trazer a minha avó para o filme, porque ela não fez uma opção, ela era dona de casa e mulher de um coronel. A vida dela foi atravessada por essa violência de estado sem que ela quisesse.”
Segundo a diretora, a onda de documentários com temática semelhante que invadiu o É Tudo Verdade é reflexo de um problema em escala mundial. Ela acredita que as sociedades se preocuparam em proteger o pacto democrático ao longo dos anos, mas que agora, com a internet, esse esforço se dissipou.
“O Brasil, de forma mais específica, é um país que não gosta de falar do passado, que tem isso como uma marca cultural muito forte. Enquanto eu fazia o documentário, eu tive que lidar com essa ressignificação do legado da ditadura que a gente tem visto. Eu cresci numa geração que aprendeu que esse período foi negativo, isso não era questionado. Mas recentemente a situação mudou muito”, diz.
“Foi por isso que eu decidi fazer esse filme, porque eu acho que a gente vive uma nova onda de autoritarismo em nível mundial. Eu acredito que o cinema tem uma função social. Não sou ingênua de acreditar que o meu filme vai mudar a história de uma nação, mas o cinema como um todo, ao expressar os tempos em que vivemos, pode despertar novos sentimentos e até mesmo alterar a cultura de um país.”
Cultura
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